domingo, 13 de novembro de 2016

#JaneiroBranco

Um mês para mente livre de doenças, para pensar no hoje e, no máximo, planejar a vida com base no que há de concreto em nossas vidas:


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Segurança do Paciente: teoria versus prática

Teoria:


Prática (relato mantendo profissional notificador, hospital e pacientes em anonimato):

'Em meu hospital, certo dia eu cometi um erro, e notifiquei os responsáveis através de e-mail e mensagem abaixo:

"Hoje cometi um erro de dose. Como nem através do sistema, nem lendo diretamente o rótulo na ampola, consegue-se identificar prontamente quantas gramas por ml têm os sulfatos de magnésio disponíveis, e eu estava correndo para fazer uma simples regra de 3 (não sei se precisava, mas enfim...), errei e prescrevi dose excessiva. Mas muito induzido também por um push padrão que o sistema oferece, que está ainda com tempo de infusão inadequado".

A partir disto, sugeri melhorias, como acréscimo da informação gramas por ml ao prescritor (já que nos manuais encontra-se mais comumente a dose de Mg em gramas) e ajuste do push padrão, criando duas alternativas inclusive (uma para reposição de Mg especificamente, lenta. Outra com 2g de sulfato de magnésio em 20 minutos, tratamento de segunda linha para asma aguda grave).

As respostas que recebi oficialmente foram reclamando de minha postura, ou dando informações que não interessavam, como quem informou o push padrão errado. Supervisor assistencial de sistemas escreveu ainda:

"De qualquer forma, vale sempre lembrar que a tela de rotina é apenas uma máscara para facilitar, podendo a qualquer momento o prescritor alterar os dados da solução clicando em detalhe e ajustando". Leia-se: burro incompetente, se havia um erro, cometestes outro em cima.

Esta foi minha resposta, depois disto nunca mais notifiquei na instituição:

"Pessoal, olha só, muito abertamente:
Um sistema que busque melhorias pelo apontamentos de equívocos somente sobrevive se brincarmos com os erros, se acharmos graça do erro do outro e do próprio erro, claro que sem perder o foco do porquê estamos nesta.
Tenho estado cada vez mais retraído para apontar coisas na casa...
Se interessa ao grupo, esta semana errei pra caramba, são pacientes ainda hospitalizados, então as provas estão todas lá.
Do seu xxxxxx não vi um resultado de cultura. Por sorte, quando visto, 48hrs depois da liberação, a conduta não necessitava alteração. Mas, fosse diferente, a história poderia ter sido diferente (já sugeri algumas vezes uma forma de melhor sinalizar isto para os médicos assistentes).
Já com xxxxxx foi pior. Suspeitei de trombose na perna (achando baixa a probabilidade, é verdade) e não só não deixei o pedido do exame que registrei intenção de pedir, como não deixei sequer heparina profilática (não havia, e não acrescentei, achando que havia). Outro colega encontrou dois dias depois clínica altamente sugestiva (entrou um colega em meu lugar no final de semana) e ecografia feita com atraso no domingo confirmou TVP. A paciente seguia sem profilaxia, iniciou diretamente anticoagulação plena."

Como resolver ou mitigar estas questões?'

O desafio real não é saber o que deve ser feito, mas driblar as armadilhas da vida que nos afastam disto. Muito mais amplo e desafiador. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Dangers of the Digital Age in Medicine

Erros associados aos cuidados em saúde: um caso verdadeiro.

Recebi este relato:

"Caro Guilherme, escrevo para descrever situação, considerando que possa explorá-la em seu Blog, e que desdobramentos e discussões tragam ao menos insights úteis para o movimento de segurança do paciente. Agradeço a preservação da identidade dos todos os envolvidos.

Sou médico de meia-idade, modéstia a parte muito bem sucedido, e atuo em renomadas instituições de capital, muito comumente envolvido com casos clínicos complexos ou pacientes graves.

Atendi recentemente idoso em enfermaria, um suposto caso de asma exacerbada. Descrição de que chegou bastante mal. Já o conheci provavelmente melhor, depois do manejo no PS, ao comparar com registros e relatos. Ainda chiava bastante. Na minha segunda visita, estava, comparado ao dia anterior, definitivamente melhor, chiando muito menos, mantinha ausculta pulmonar simétrica bilateral. Sai do quarto e registrava o atendimento no computador junto ao posto de enfermagem quando chamaram por parada cardiorrespiratória - em meu paciente. Fui correndo até o quarto, chegando junto do médico intercorrentista. Ele, sabendo de minha condição de assistente principal, colocou-se inicialmente em posição de retaguarda. Mas percebeu minha demora em atuar, e chamou para si a liderança do atendimento: iniciou massagem e passou a delegar as primeiras ações, enquanto aguardávamos o time de parada cardiorrespiratória.

Reflexão #1: Sou um médico bem experimentado neste tipo de atendimento, mas bem verdade que fazia algum tempo sem atuação prática ou treinamento em ressuscitação cardiorrespiratória. Avaliando retrospectivamente, percebo claramente que, surpreendido e surpreso com a evolução apresentada pela paciente, perdi momentaneamente o foco necessário – estava com os pensamentos mais voltados para o que levou o idoso a colapsar daquela forma. Foi quando o colega resolveu, assertivamente, assumir o controle da situação. A primeira falha foi minha!

Logo depois chegou o time da parada cardiorrespiratória. Todos vestidos iguais, aventais verdes de área fechada. Ninguém se apresentou. Um rapaz bateu no ombro do médico intercorrentista que estava a massagear e disse com muita propriedade: - “deixa conosco”. Reforçou algumas ordens e questionamentos, como “monitorar”, “acesso venoso?”. Eu e o plantonista do andar colocamo-nos como observadores do atendimento, eu convencido que o rapaz era o médico da equipe. Pouco tempo depois chegaram outros dois de verde, mas nada falaram. Um deles dirigiu-se à cabeceira para manejo de via área, interpretei que era um segundo médico. O rapaz que bateu no ombro do colega era um (muito bom) técnico de enfermagem. Naquele time, todos correram para o ambiente da grave intercorrência, menos os médicos, que, caminhando, chegaram depois.

Presenciei coisas diferentes das previstas em manuais internacionais de boas práticas. Demorou-se para avaliar o ritmo da parada, houve dificuldades na intubação por questões técnicas, não vi checarem se o tubo estava no lugar certo a partir da tradicional ausculta epigástrica e dos quatro campos pulmonares. Definitivamente não havia papéis e funções claramente definidos.

O paciente teve a parada revertida e foi encaminhada à UTI.

Reflexão #2: Façamos uma analogia entre o atendimento de uma parada cardíaca e o Pit stop de corrida automobilística. No Pit stop, não basta o abastecimento e a troca de pneus. Se tudo não ocorrer em menos de minuto e seguindo um alto padrão de qualidade, de nada adianta, ao final, o tanque cheio e os pneus novos. Pois então...
Será que na Saúde não estamos aceitando coleção de falhas, como se em nosso Pit stop não importasse o tempo ou a eficiência? Eu próprio já participei como líder maior em atendimentos que não transcorreram idealmente, mas quando o paciente é “salvo” (tem pulso! saiu da parada!) eximimos-nos de pensar mais amplo, por diversas razões... Guilherme, se esperarem de cada um de nós a auto-crítica e a ação relacionada, não acontecerá, nada acontecerá. É até compreensível, entendes?

Fui lá na UTI algum tempo depois, na expectativa de passar melhor o caso, uma das minhas hipóteses diagnósticas (embolia pulmonar) e sugestão de avaliação diagnóstica: - “gostaria, assim que estabilizado, e se possível, que o encaminhássemos para uma angiotomografia”. Era início da noite e fiquei com a nítida impressão de que os colegas queriam fazer as coisas o mais rápido possível. Outra sensação era de que eu estava atrapalhando, ou pelo menos sobrando. Cheguei a perguntar se queriam que eu assumisse daquele momento em diante. Acho que também não me apresentei como médico assistente (a gente sempre pensa que é óbvio, não?). Posso ter sido confundido com o intercorrentista do andar. A resposta foi: - “quem sabe senta no computador e deixa descrito o que gostaria de dizer”. Retraí-me. Muito fortemente.

Reflexão #3: Terei errado novamente, Guilherme? Não gostaria que fosse verdade, já bastante incomodado com a primeira falha. Mas saiba que não era um momento onde conversar seria inadequado. O paciente já estava em ventilador mecânico, harmônico, saturando bem, com pressão arterial e frequência cardíaca adequadas. Eu definitivamente não representava um sem noção atrapalhando em uma situação com necessidade de foco total.
A própria interpretação de que estavam “com pressa” pode vir influenciada por minha contra-referência. Mas, enfim, como estas coisas podem ser melhoradas? Há uma estranha cultura tomando da Saúde onde existe cada vez menos diálogo e parceria. Isto se aprende em treinamentos de equipe? Imagino que não...

O que vi no seguimento foi ainda pior. Passagem de acesso venoso central com quebras grosseiras de barreiras de proteção (lavagem de mão, paramentação completa) e, reforço, numa situação já sob controle, onde não haveria justificativa. A Enfermagem ofereceu o aparelho de ecografia, que sabemos aumenta a segurança do procedimento. Não foi utilizado.

Se havia foco necessário o suficiente para não se permitir conversas paralelas, como explicar a liberação do paciente para angiotomografia logo em seguida? Sabemos que transporte intra-hospitalar é um momento de muitas vulnerabilidades e riscos. Normalmente, algumas coisas são sempre feitas antes, por mais compensado que pareça o paciente, como avaliação de uma gasometria arterial, para ver se a ventilação mecânica está mesmo adequada, e de um simples RX de toráx.

Radiologista ligou para a UTI avisando: ausência de embolia. Presença de pneumotórax bilateral!!! Diagnóstico que poderia e deveria ter sido feito a partir do RX, sem o paciente sair da unidade intensiva. E o tratamento disto - drenagem de tórax - obrigatoriamente imposto antes de qualquer transporte.

A paciente foi salva. Desenvolveu estado vegetativo persistente.


Tenho lido muito que, consciente ou inconscientemente, ao absorvermos, calados estes eventos cotidianos, nós, profissionais da saúde, estamos na verdade nos boicotando, além do sistema. Nunca o esgotamento profissional esteve tão prevalente, em parte por estes fatores, e criando ciclo vicioso de mais falhas na assistência à saúde. Eu agendei meu Curso de Suporte Avançado de Vida em Cardiologia–ACLS para o próximo mês". 

Por que protocolos pouco funcionam? Por que médicos não aderem aos guidelines?


Pelas inúmeras questões que permitem as críticas aos guidelines apontadas e consequentes justificativas dos médicos para não aplicação (parte delas adequadas até), reforço minha ideia de que devem ser incorporados muito lentamente para sucesso. 'Slow' para dar tempo de serem construídos ou adaptados bottom-up, acoplados a iniciativas mais amplas de melhoria da qualidade. Isoladamente, guidelines ou protocolos, pouco funcionam.

Como exemplo, lembro de iniciativa recente em hospital onde corrida por protocolos deflagrada pela Acreditação fez com que um serviço gerasse cerca de duas dezenas deles em poucos meses. Chegaram a gerar um livro. Nada discutido com a ponta, composta inclusive por diversos profissionais de outras especialidades. Conflitos inúteis (mas por vezes compreensíveis e até legítimos) a cerca de quem é dono do que na Medicina, pela natureza absolutamente transdisciplinar de alguns temas, entre outras complexas razões, apenas ilustram motivos para, não infrequentemente, protocolos servirem para fazermos justamente ao contrário do que neles constam.

A relação de protocolos locais e governança clínica é outro assunto instigante. Em outro hospital, observei situação interessantíssima: médico nada aderente a padronizações e protocolos locais, mas puxa-saco da gestão (é muito comum preferirem o perfil que não questiona), foi promovido à coordenador assistencial. Seguiu nada aderente ele próprio, não preenche uma ficha, mas passou a cobrar aderência de terceiros. Destes terceiros, escutei com todas as letras que "agora sim largariam de mão". As duplas mensagens dentro das organizações são um enorme problema, capazes de corroer culturas, e de causar cicatrizes definitivas e que comprometem processo de melhoria de forma dramática. Responsabilidade da alta gestão. Não de guidelines ou protocolos em si.
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